Programa preserva memória do Circo Brasileiro


A atiradora de facas Suely Perez, 66, natural de Chapecó (SC), nasceu dentro de um circo, tradição familiar desde a sua tataravó, que era austríaca. Sua mãe, depois de um número de equilíbrio no arame, sentiu as fortes dores do parto, se dirigiu ao fundo da lona e, numa barraca, deu à luz a menina que foi, de imediato, apresentada ao público, recebendo sonoros aplausos.

Aos 5 anos aprendeu com o pai, atirador de facas, a manejar a arma branca com destreza. Com 9 anos, já era uma profissional na área e levantava a plateia com seu número, sempre muito aguardado pois, além de tudo, era muito bonita e graciosa. “Atirei facas dos 9 aos 45 anos sem nunca ter ferido ninguém”, conta, orgulhosa.

Em plena pandemia da Covid-19, um projeto idealizado pelo Centro de Memória do Circo (CMC), da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo, em parceria com a produtora Tenda dos Milagres Filmes, foi a campo ouvir artistas circenses brasileiros, com o objetivo de salvaguardar suas história, lembranças e reminiscências.

Trata-se do Programa Emergencial da Memória do Circo Brasileiro, que ouviu 40 artistas em todo o país, em cerca de 80 horas de gravação audiovisual. Lançado no mês passado, pode ser conferido pelo grande público através do youtube.com/user/memoriadocirco.

A história contada por Suely, que também fez trapézio e corda, entre outras atividades circenses, se junta aos relatos concedidos por palhaços, equilibristas, acrobatas, dançarinas, adestradores, secretários, capatazes, empresários e técnicos, todos de notável atuação, de diferentes regiões do país e de diferentes circos, do maior ao menor, do internacional ao local, com idades entre 60 e 89 anos.

Rumbeira, contorcionista

Não faltam boas narrativas. Como a da rumbeira pernambucana Neide, nascida Jussineide Conceição Silva, filha de um retratista que ficou viúvo com quatro filhos, entre os quais Neide, que tinha apenas 7 anos na época. Fazendo retratos dos artistas do picadeiro, ele foi convidado a seguir com o circo. “Mas eu tenho quatro filhos!”, disse, ao que ouviu de um circense: “Pois venha e traga os quatro”.

E assim foi feito. A menina Neide, que com os irmãos dormiam no pano de roda, onde eram colocadas as estacas de armar o circo, virou rumbeira e contorcionista. O pai tornou-se palhaço e mestre de cena, e os outros três irmãos, é claro, também arranjaram logo um ofício dentro do picadeiro. Neide casou com homem de circo e teve três filhos, que também se dedicam à arte.

Um deles, Clébson Macedo Silva, é hoje o palhaço Pipo. Como o circo vive de público e viagens, itens excluídos do cenário da pandemia, a família hoje está em Dias D’Avila. Para ele, “a maior alegria de ser circense é visitar lugares onde a tecnologia ainda não impera e ver a alegria das crianças”.

“No circo, o conhecimento se preserva principalmente através da memória oral, e no início da pandemia temíamos o desaparecimento de um (circense) longevo/longeva, o que equivale ao incêndio de uma biblioteca. Com a pandemia, o risco era de ver incendiadas várias bibliotecas”, conta Verônica Tamaoki, coordenadora do Centro de Memória do Circo, que detém o maior acervo circense da América Latina.

Ela lembra que as entrevistas audiovisuais, que foram feitas pela internet, foram conduzidas por 12 profissionais, pesquisadores e artistas ligados ao Centro de Memória do Circo.

Os 40 vídeos de oito minutos em média, editados com fragmentos dos depoimentos de cada um dos artistas e lançado no YouTube, mostram uma pluralidade de experiências.

O Circo Picolino de Salvador formou profissionais do picadeiro | Foto: Margarida Neide | Ag. A TARDE
O Circo Picolino de Salvador formou profissionais do picadeiro 

Entrevistas na íntegra

Todas as entrevistas ficarão disponíveis, na íntegra, para pesquisas no acervo do Centro de Memória do Circo. O acesso se dará por meio de solicitação ao órgão, vinculado à Secretaria de Cultura de São Paulo.

A historiadora e realizadora audiovisual Karina Paz, uma das sócias da produtora Tenda de Milagres Filmes, afirma que o maior desafio foi ter de fazer tudo de modo remoto. Em função da pandemia, foram utilizados os aparelhos dos próprios mestres circenses, que precisaram da ajuda dos filhos para realizar as conversas.

Em alguns casos não havia boa conexão de internet, nem luz e enquadramento ideais, mas Karina afirma que “me desapeguei, porque, dentro das condições, era o que se podia fazer, e só de uma coisa não abri mão: da qualidade do som”. Ela conta que a execução do projeto foi feito de janeiro a março deste ano.

As entrevistas aconteceram em 14 estados. Na Bahia, além de Salvador, sete municípios foram visitados, a exemplo de Camaçari, Luís Eduardo Magalhães e Serrinha. Uma das curiosidades, de acordo com Karina, é que muitos filhos não sabiam que os pais eram mestres. “Este reconhecimento e valorização do saber dos mais velhos foi bem legal”, destacou.

No circo, a generosidade não é uma palavra vã. Acrobata, trapezista e equilibrista, Ângela Cericola (RJ), graduada em pedagogia, cresceu cercada por 13 irmãos, apenas dois biológicos. Os pais criaram 14 filhos. “O circo ia passando e minha mãe ficava com pena quando alguém falava: você não quer levar essa criança? O pai morreu, a mãe morreu. Eles ficavam com pena e levavam, e adotavam”, relata. Vale a pena ouvir os relatos que são, na maioria, mesmo quando falam das dificuldades, muito bem-humorados.

A Tarde

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