Cultura machista que esfaqueia 68 vezes, mata 242 mulheres e diz que "está maluca". O que está por trás da violência contra elas?

Cultura machista que esfaqueia 68 vezes, mata 242 mulheres e diz que "está maluca". O que está por trás da violência contra elas?

Humilhadas, agredidas, lesadas e muitas vezes mortas! Infelizmente, essas são situações presentes, em pleno século 21, na história de um grande número de mulheres. Elas são pessoas acometidas por um tipo de violência que acontece, simplesmente, pela sua condição de gênero.

No Brasil, as autoridades que atuam à frente do problema receberam 105.821 denúncias sobre crimes dessa natureza, ocorridos no ano de 2020. Os dados foram divulgados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) no último dia 7 de março. Esta foi uma notícia nada animadora à véspera do dia dedicado a elas.

Desalento maior é perceber que as ocorrências se dão, em sua maioria, no âmbito das famílias das vítimas. Registros do MDH apontam que com a pandemia da Covid-19, o problema apresentou um sensível crescimento, dado ao tempo maior de convivência entre agressores e agredidas.

No próximo mês de agosto, a Lei Maria da Penha vai completar 15 anos. É fato que a legislação criou mecanismos importantes para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Os crimes, porém, continuam acontecendo com frequência e sinalizam para a necessidade de novas medidas que sustentem a eficácia da lei.

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Na Bahia, segundo a Polícia Civil, nos últimos três anos, 242 pessoas foram vítimas de feminicídios, assassinatos que acontecem relacionados à condição de gênero da mulher. Em Salvador, 38 foram mortas no período. Apesar de ser o crime mais trágico do contexto, outras ocorrências preenchem o atlas da violência. 

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SOCIEDADE MACHISTA

As investigações dessas ocorrências devem ser feitas por uma Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM). Essa unidade da Polícia Civil tem como uma de suas atribuições a realização de ações preventivas em defesa dessas pessoas. É lá que são registrados os Boletins de Ocorrência e é feita a solicitação ao judiciário das medidas protetivas de urgência, quando necesário.

A advogada e ativista do Direito das Mulheres, Vanessa Carrilho Rosa, lamenta, no entanto, pelo número insuficiente de unidades especializadas de atendimento à mulher. Ela fez referência à capital baiana, que possui uma população estimada em quase 3 milhões de habitantes e dispõe, apenas, de duas DEAMs. Uma em Brotas e outra em Periperi.

Mesmo com a aplicação da Lei Maria da Penha, um dos motivos que levam os homens a continuarem praticando atos de violência contra a mulher, segundo Carrilho, está atrelado ao machismo impregnado em nossa sociedade. Por isso, ela adverte que as autoridades policiais envolvidas no acolhimento das vítimas devem estar preparadas, de forma mais ampla, para o atendimento.

"O machismo não é só social. Ele é também institucional e pode acontecer dentro de uma delegacia, quando se vai dar uma queixa. Muitas vezes, a mulher acaba ficando inibida e tem medo de ser qualificada como culpada da situação", comenta. A advogada entende que as unidades espcializadas reduzem esse desconforto, mas observa que quando a mulher sofre algum tipo de abuso, ela prefere se dirigir para a delegacia mais próxima de sua casa.

"Ah! a senhora está com esse short, aí sabe como é, né?" Esta uma frase absurda, mas não incomum em uma delegacia, de acordo com Vanessa. "Essas mulheres precisam de mais amparo institucional, sobretudo, para que elas comecem a denunciar e a não se calarem em relação ao problema", completa.

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MARCAS DE UM RELACIONAMENTO TÓXICO

Depois de romper o ciclo da violência e enfrentar o estágio da denúncia, a vítima não para de encarar desafios. O próximo passo é o resgate de sua autoestima. "Ser vítima de um relacionamento abusivo torna a pessoa isolada, assustada e deprimida. Normalmente, passam a ser pessoas que desenvolvem a síndrome do medo, fobias e crises de ansiedade", explica a psicóloga Íris Cavalcanti.

A especialista reforça a influência da cultura do patriarcado, incutida de forma muito forte na nossa sociedade machista, e comentou que a capacidade da mulher é, a todo momento, questionada. A maioria, em sua fase adulta, segundo Íris, em algum momento de sua vida sofreu algum tipo de violência sexual, física ou psicológica.

"Infelizmente, o abuso faz parte da história de grande parte das mulheres. Não é fácil estabelecer um parâmetro pra definir, de fato, um relacionamento abusivo, porque, inclusive, para a própria pessoa que está vivenciando, existe o questionamento sobre se, realmente, aquilo está acontecendo. Existe uma linha muito tênue entre o que é sadio e o que não é", pontua.

Ela chamou a atenção, ainda, para os prejuízos causados à personalidade da pessoa abusada dentro de um relacionamento, considerado, tóxico. "A vítima acaba perdendo suas características próprias: da forma de vestir, de se relacionar, de falar, do que gosta, do que come, e de como vive", diz a psicóloga, acrescentando que mesmo saindo da relação, a pessoa pode ficar com sequelas. 

Íris ressalta que a violência física é muito dura por extrapolar todos os limites da convivência, mas considera que o abuso psicológico chega a ser muito pior, devido à forma disfarçada como ele se manifesta. Mas quais os exemplos? “Você tá maluca! Besteira! Eu falei brincando! Eu quero seu bem, não precisa ficar dessa forma!”, cita. 

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RONDA MARIA DA PENHA

Um instrumento do estado, criado em 2015, funciona como um serviço de qualidade e proteção às mulheres em situação de violência doméstica, na Bahia. A Ronda Maria da Penha, uma unidade da Polícia Militar, está sediada no Subúrbio de Salvador, local, que segundo a Secretaria da Segurança Pública, tem o maior número de vítimas.

A comandante, major Tereza Raquel, define o equipamento como uma estrutura de fortalecimento da rede de enfrentamento à violência contra a mulher. São assistidas pela unidade, as mulheres que rompem o ciclo da violência e denunciam os seus agressores, solicitando a medida protetiva de urgência, julgada pelas varas de violência doméstica e familiar.

Os casos mais graves, assim julgados pelo juiz, são encaminhados para o acompanhamento da RMP, para evitar que as envolvidas se tornem vítimas de feminicídio. "Nós temos nossas guarnições que vão até a casa da pessoa assistida ou ao local indicado por ela, às vezes no trabalho, no horário que for mais conveniente, para passar as orientações que ela precisa ter para sua rotina e proteção", explica a oficial. 

Segundo a comandante, há um grupo de assistidas relativamente grande, e essas muheres precisam de um fortalecimento na segurança. "A gente dá os devidos encaminhamentos, quando é percebido que elas necessitam de uma assessoria jurídica, de um apoio psicológico, ou quando seus filhos precisam de algum tipo de apoio. Vamos, sempre, acompanhá-las, até pra fazer a monitoração e cumprimento dessa medida protetiva", esclarece. 

De acordo com a major Tereza Raquel, em Salvador, a RMP tem guarnições diárias, responsáveis pelo acompanhamento das assistidas, além de uma equipe multidisciplinar que atua na parte preventiva, realizando trabalhos em empresas, escolas e diversos segmentos da sociedade, discutindo a temática e promovendo a construção de um entendimento sobre o problema.

UMA HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO

Em fevereiro de 2019, uma história triste, mas com final feliz, causou comoção à população baiana e ganhou repercussão em todo o país. Isabela Conde, uma fisioterapeuta com 36 anos à época, foi vítima de uma brutal tentativa de feminicídio, em Salvador.

Ela recebeu 68 facadas e com muita bravura conseguiu sobreviver. Isabela teve que se fingir de morta para fazer com que o seu namorado, com o apoio de dois comparsas, parassem de lhe agredir com os golpes de faca. Era uma quinta-feira de Carnaval, quando tudo aconteceu, logo após ela deixar o expediente de trabalho em um hospital.

Isabela topou conversar com nossa reportagem e, mais uma vez, trouxe a narrativa sobre aquela noite de terror. Mas o melhor de tudo, além da preservação da vida, é a sua condição de superação e o direcionamento encontrado para lidar com a sua história. Atualmente, ela dá aulas em uma universidade, continua com o seu trabalho no hospital e dedica parte do seu tempo com atividades relacionadas ao enfrentamento da violência contra as mulheres.

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Essa reportagem utilizou em algumas expressões, em destaque, trechos da letra da música “Triste Louca ou Má”, composta por Ju Strassacapa, integrante da banda Francisco El Hombre. A canção fala sobre relacionamentos abusivos, a violência doméstica e situações que inferiorizam as mulheres perante a sociedade. No vídeo da entrevista com a fisioterapeuta, Isabela Conde, os acordes ao fundo foram extraídos da melodia da mesma obra.

Aratu

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