O constitucionalista Pedro Abramovay Foto: Ailton de Freitas
Ao analisar a atual conjuntura da segurança pública no Rio, o constitucionalista Pedro Abramovay aponta contradições entre o conceito da principal aposta do governador Cláudio Castro para a área, o programa Cidade Integrada, e a política de estímulo a uma polícia de confronto, segundo o especialista, mantida desde a gestão Wilson Witzel. Ele afirma ainda que as restrições às operações em favelas impostas pela ADPF 635, recém-aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), são um “passo importante que dá uma chance para a polícia” do Rio. Mas ressalta que outras ações são urgentes, como o melhor controle das armas e o investimento em ações de inteligência, para evitar que incursões terminem em mortes, como as oito da última sexta-feira, no Complexo da Penha.
O que o caso de Yago Corrêa de Souza, jovem negro preso no Jacarezinho com pão, em meio à implantação do Cidade Integrada, revela sobre a relação entre polícia e comunidade?
As pessoas acham que não, mas a polícia responde muito à autoridade do governo. Quando um governo incentiva a polícia a agir como justiceira e fora da lei, ela responde. A gestão (Wilson) Witzel e (Cláudio) Castro, desde o início, estimulou a polícia a não cumprir a lei, uma polícia que entra para matar, que não tem como objetivo garantir a segurança de todos os cidadãos, mas produzir o espetáculo da guerra. Então, ela entra nessa relação de guerra com as favelas. E, quando a polícia não tem protocolos nem informação para agir, só tem estímulo a esse espetáculo, entrega o que a gente viu. Aí, não tem julgamento. Quem é trabalhador vai ser tratado como bandido. Todo mundo que é negro na favela passa a ser tratado dessa maneira. É o produto do incentivo que Witzel e Castro deram à polícia nesses últimos anos. Não é algo isolado, não dá para culpar aquele policial.
Esse padrão se repete em outras instituições?
É verdade também que o sistema de Justiça corrobora, confirma sempre o que a polícia fala. A gente vê todos esses casos de reconhecimento fotográfico. Ou seja, se a polícia chega, apresenta a foto de alguém, e a pessoa reconhece, o Judiciário passa por cima e mantém pessoas inocentes (presas). Tudo tem uma mesma lógica, que é o oposto de segurança e de Cidade Integrada. É uma cidade absolutamente partida.
No Jacarezinho, muitos estão céticos quanto ao Cidade Integrada. Qual sua opinião?
Eles têm muita razão, e por vários motivos, um deles porque viram o fracasso muitas vezes, como nas UPPs, que por muito tempo também tinha acertos. No entanto, é uma política de um governo que nunca falou em integração e em eficiência da polícia, que só falou na política de guerra, de “acertar a cabecinha”, e que chega no ano eleitoral e apresenta uma proposta dessa... O fato de, no começo, a prefeitura (do Rio) não saber do programa, mostra isso: (o Cidade Integrada) está sendo feito muito mais no gabinete de campanha do que no gabinete preocupado com a segurança pública. Então, acho que as pessoas têm toda razão de ficarem céticas. A grande pergunta é: ou o governador acredita na política anterior, de tiro, de morte, de descontrole das armas, nesse discurso que o Witzel fazia desde o começo; ou ele diz que é preciso mudar, que estava errado antes. E se é preciso mudar, precisa ser combinado com a comunidade.
É possível tirar o programa desse ‘gabinete eleitoral’?
Completamente. E o Rio já mostrou que é possível. A solução é a polícia que respeite a lei e os protocolos. Outro ponto é que o governo hoje oferece aos policiais um tratamento de heróis: ‘você está numa guerra e precisa matar’. Isso energiza um pedaço da polícia e gera até lealdade. O que precisa é que eles sejam tradados como trabalhadores da segurança pública. Vamos discutir creches para os filhos de policiais, a alimentação (dos agentes), a saúde deles. Como valorizar, de fato, a polícia? Ele precisa ser tratado como profissional qualificado, com plano de carreira.
Todo esse processo se dá em meio à aprovação, no Supremo, da ADPF 635. Qual o impacto das medidas?
Precisa, sim, ter protocolo de uso da força, e aí acho que a ADPF é um grande favor para o Rio, um passo muito importante que dá uma chance para a polícia. São enormes avanços. Primeiro, precisamos de uma polícia que respeite a lei. A polícia que não respeita a lei na forma como entra na favela durante uma operação é a mesma que não respeita a lei para se aliar a grupos criminosos ou no contexto da corrupção policial. Então, o bom policial quer a polícia com protocolos claros, obediente à lei, com o objetivo de proteger os cidadãos. E a ADPF vai nesse sentido, exige que a polícia justifique porque está entrando (na comunidade). Exige uma ambulância (nas operações), que é um marco fundamental para mostrar que a polícia não está ali para matar. Outro ponto fundamental é ter uma corregedoria da polícia forte. E também é positivo não poder mais ter mandados judiciais genéricos. Hoje, acontece o que chamam de cavalo de troia: a polícia entra na casa das pessoas sem que haja nada que justifique entrar como fazem. Isso seria absolutamente impossível numa região rica da cidade. A ADPF traz essas disciplinas de maneira clara.
E as câmeras nas fardas?
Câmera é positivo. Vimos agora em São Paulo como, de fato, as câmeras podem ajudar na redução da letalidade. Mas isso faz parte de uma política ampla. Câmera sozinha não derruba a letalidade.
O que ainda não foi contemplado na ADPF?
No tema o sigilo dos protocolos, ninguém está falando que tem que revelar qual vai ser a operação, anunciar o que vai ser feito. É evidente que investigação tem aspectos sigilosos. Mas o protocolo tem que ser público, porque é o que permite que a sociedade cobre se a polícia está cumprindo a lei. Ao esconder o protocolo, não se consegue saber se a polícia está cumprindo as regras, se é o policial que está passando do limite ou se foi o comando. Dessa forma, não se sabe quem responsabilizar, e esta é a chave para o abuso. A polícia entra (na comunidade) para pegar alguns gramas de maconha e mata pessoas, deixa crianças sem escola...
Como ocorreu nesta sexta-feira na Vila Cruzeiro...
Foi uma ação que não prendeu seu principal alvo (o traficante Chico Bento, do Jacarezinho), mas colocou a comunidade inteira em risco
Extra o Globo
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