Dez dias após megaoperação no Rio, bandidos mantêm base na mata que separa Alemão e Penha

Ponto de observação no alto da Serra da Misericórdia, que separa os complexos do Alemão e da Penha, é flagrado pelo EXTRA

Na semana passada, uma megaoperação que mobilizou 2.500 policiais encurralou bandidos do Comando Vermelho (CV) dos complexos do Alemão e da Penha na Serra da Misericórdia. Foi nessa região de mata, que separa os dois conjuntos de favelas, que boa parte dos 117 suspeitos foram mortos. Passados nove dias da ação policial mais letal da história do Rio, que teve ainda 99 presos e quatro agentes mortos, uma equipe do GLOBO flagrou, justamente neste maciço, um ponto de observação de criminosos em plena atividade. Ao lado de uma estrutura de madeira, coberta por telhas de alumínio, um indivíduo com roupa camuflada — mesma tática identificada pelas forças de segurança durante a operação — tinha vista privilegiada para vias importantes, como a Estrada Adhemar Bebiano, e comunidades da região.

Localização do ponto de observação flagrado pelo GLOBO na Serra da Misericórdia — Foto: Editoria de Arte
Localização do ponto de observação flagrado pelo GLOBO na Serra da Misericórdia — Foto: Editoria de Arte

Instalado ao lado de uma pedreira, o local fica no Engenho da Rainha, atrás da Favela da Flexal, também dominada pelo CV. O suspeito, quase imperceptível, fica num ponto isolado, acima das casas, em meio a árvores e rochas. Para guardar posição, ele se levanta de uma cadeira e, com um objeto na mão direita e cabelo pintado na cor vermelha, observa o entorno. Victor César dos Santos, secretário de Segurança Pública do Rio, reconhece que não é possível, em uma única operação, acabar com a criminalidade que ocupa a região — que, segundo apontado pela investigação, é dominada por até mil criminosos — há anos.

Todos para a mata

Foi por essa mesma área no Engenho da Rainha que policiais do 3º BPM (Méier) entraram no Complexo do Alemão no último dia 28, para forçar o deslocamento de bandidos para a Serra da Misericórdia, onde policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) estavam de prontidão, estratégia definida pela polícia como “Muro do Bope”. Incursões em direção a essa área de mata também ocorreram pela Penha e pelo Alemão, contando com os batalhões de Choque, de Rondas Especiais e Controle de Multidão (Recom) e de Irajá (41º BPM), além de agentes da Polícia Civil.

— Não consigo imaginar, dentro desse histórico de décadas, que uma única operação, num único dia, vá acabar com a criminalidade que está enraizada naquela região. A gente tem que ser realista. Existe o desafio? Sim. Ele é grande? É, mas nós não vamos parar enquanto esses criminosos não forem presos — diz Santos, que ressalta a importância de tornar o crime organizado um negócio que não seja vantajoso.

Flagrante: ponto de observação na Serra da Misericórdia, com suspeito, de roupa camuflada, ao lado da estrutura — Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo
Flagrante: ponto de observação na Serra da Misericórdia, com suspeito, de roupa camuflada, ao lado da estrutura — Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo

Desde o dia da ação policial, o Disque Denúncia já recebeu 327 denúncias relacionadas às regiões do Alemão e da Penha: elas vão desde a presença de barricadas e a movimentação de bandidos pelas comunidades até informações sobre possíveis localizações dos criminosos. Dessas, 127 delas (38,8%) são sobre Edgar Alves Andrade, o Doca, chefe do Comando Vermelho no Complexo da Penha, um dos alvos daquela operação (e que não foi capturado). O serviço oferece recompensa de R$ 100 mil por informações que levem à sua prisão.

O secretário de Segurança afirma que Doca e os demais chefes próximos a ele seguem sendo monitorados pela polícia:

— Essas pessoas têm uma posição dentro da organização criminosa, com uma dedicação exclusiva de seguranças para facilitar exatamente esconderijos, a fuga.

Santos observa que, além das prisões realizadas, a operação também foi importante para a obtenção de mídias e arquivos da nuvem, que serão usados na investigação, que começou há um ano e continua.

Novo normal

Enquanto a presença de bandidos no território ainda é uma realidade, quem mora ou trabalha por ali tenta voltar à rotina, dentro do possível. Mas esse cotidiano é marcado pelo silêncio, não só com o receio de dar entrevistas à imprensa, mas até entre os próprios moradores. Um comerciante, por exemplo, contou que mal se fala no que aconteceu, apesar do grande número de mortos.

— Para ser sincero, os comentários são poucos. Devido à operação ter sido contra os criminosos, os moradores não opinam tanto — diz um lojista de 29 anos, que trabalha num acesso ao Complexo da Penha e pediu para ficar no anonimato.

Disque Denúncia oferece recompensa de R$ 100 mil pela captura de Doca — Foto: Reprodução
Disque Denúncia oferece recompensa de R$ 100 mil pela captura de Doca — Foto: Reprodução

A atendente de uma loja lembrou o clima de medo quando as comunidades foram invadidas pelos policiais:

— A bala perdida não tem dono, não tem alvo.

Os transportes também voltaram a circular normalmente. O maior impacto foi na linha 721 (Vila Cruzeiro— Cascadura), que faz ponto final dentro da Vila Cruzeiro, e que passou três dias fazendo uma parada em um local improvisado. Seu trajeto inclui, por exemplo, a Praça São Lucas, onde dezenas de corpos de suspeitos, encontrados na mata, foram enfileirados após resgate por parentes. O vai e vem de Kombis e vans também já foi retomado, tanto na Vila Cruzeiro como no entorno do Complexo do Alemão.

Com pontos de ônibus cheios, além de trabalhadores, estudantes também voltaram às ruas. Após dois dias fechadas, as escolas municipais e estaduais da região reabriram. A Secretaria municipal de Saúde, por sua vez, informa que algumas unidades de atenção primária à saúde tiveram funcionamento afetado no dia da operação, retomado “logo depois”.

Disque Denúncia oferece recompensa de R$ 100 mil pela captura de Doca — Foto: Reprodução
Disque Denúncia oferece recompensa de R$ 100 mil pela captura de Doca — Foto: Reprodução

Barricadas

As barricadas, por sua vez, continuam onde sempre estiveram. Nas entradas da Vila Cruzeiro, elas estão por lá, mostrando que o tráfico ainda domina o território. Apesar dos obstáculos, moradores tentam seguir a vida, indo à feira e se exercitando numa academia da terceira idade na Estrada José Rucas, via que tem bloqueios na separação com a Rua Sargento Névio dos Santos. Enquanto na semana passada um carro queimado ocupava o meio da rua, o local agora tem apenas ferros fincados no asfalto — ontem até um caminhão para coletar o lixo conseguiu passar pela barreira.

Mesma situação foi flagrada na esquina entre as ruas Aimoré e Taperoá, por onde carros que ultrapassavam as barricadas mantinham o pisca-alerta ligado. Em vias transversais à Avenida Itaoca — como a Travessa Nuevo León — e à Estrada Adhemar Bebiano — como as ruas Oito e Relicário —, nos acessos ao Complexo do Alemão, o cenário se repete.

Próxima ao Alemão, Clínica da Família Bibi Vogel funciona normalmente — Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo
Próxima ao Alemão, Clínica da Família Bibi Vogel funciona normalmente — Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo

Um homem de 38 anos que, desde os 9, mora no Morro do Alemão, relata que essa volta à normalidade “acaba sendo um costume” dos moradores após operações.

— Tudo voltou a ser como antes, só que agora tem sangue — resume ele, enquanto faz compras num hortifrúti.

Caminhão de lixo cruza barricadas para acessar a Vila Cruzeiro; na semana passada, um carro queimado ocupava o local — Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo
Caminhão de lixo cruza barricadas para acessar a Vila Cruzeiro; na semana passada, um carro queimado ocupava o local — Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo

Esse morador, assim como comerciantes, relata ainda a sensação de presença constante de carros da Polícia Militar nas vias do entorno do Alemão e da Penha. O GLOBO viu diversos veículos da corporação, seja fazendo ronda ou estacionados.

Viaturas da PM instaladas num acesso ao Complexo do Alemão, nove dias após megaoperação — Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo
Viaturas da PM instaladas num acesso ao Complexo do Alemão, nove dias após megaoperação — Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo

Ontem, a cerca de dez quilômetros dali, no Theatro Municipal, no Centro, autoridades da Segurança e o governador Cláudio Castro participaram da missa de sétimo dia em memória dos quatro policiais mortos na megaoperação. As famílias dos agentes foram recebidas sob aplausos do público. A filha de Rodrigo Velloso Cabral, de 34 anos, policial civil da 39ª DP (Pavuna), usava uma camisa do Botafogo com a inscrição: “Papai, te amo”. Em seu discurso, Castro disse que o combate à criminalidade não terá retrocesso:

— Podem ameaçar a gente à vontade. A flecha saiu do arco, e ela não vai voltar. Não vamos mais aceitar ver armas de guerra ao sairmos de nossas casas. Vamos combater isso. Doa o que doer.

Extra o Globo

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